quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido.

Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda.

E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa.

Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. (…) Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar.

Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escadalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu.

Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
- Clarice Lispector in “Perdoando Deus”
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2 comentários:

Ursula Gomes disse...

"Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza?"
Prá isso não tenho resposta, mas sei o quanto a tua escolha foi acertada e de extrema sensibilidade. Amei Ur.

Anônimo disse...

Clarice parece sempre uma boa pedida, e digo parece, pelo pouco que conheço.
Entender o texto dela eh se identificar um pouco, o que era complexo, torna-se familiar.

Gostaria de frisar uma coisa que senti...sei que ela quis entender mais uma das "complexidades" (resumo um pouco cruel do que ela escreveu) da vida, e nisto, ressalto que amar a Deus e o seu amor e existencia eh muito mais simples do que se parece e/ou escreve.

Bjus